terça-feira, 11 de agosto de 2020

Escritor cearense Sidney Rocha é reconhecido em Portugal pelo conjunto da obra

Foto Anny Stone
Jornada de Sidney Rocha é homenageada pelo Prêmio Literário Guerra Junqueiro. Concedido pelo Freixo Festival Internacional de Literatura (FFIL), a iniciativa é fronte de defesa da língua portuguesa. A honraria em terras lusitanas ilumina o conjunto da obra e reverencia autores e autoras oriundas de países onde o português é a língua oficial. Ao lado do escritor cearense estão Raul Calane da Silva (Moçambique), Lopito Feijóo (Angola), Tony Tcheka (Guiné-Bissau), Jorge Carlos Fonseca (Cabo Verde), Olinda Beja (São Tomé e Príncipe) e Ana Luísa Amaral (Portugal).

O feito tão expressivo resgata uma caminhada com mais de quatro décadas de dedicação à literatura. Nascido em Juazeiro do Norte, Sidney tinha coisa de oito anos quando concebeu a primeira obra. A feitura de um cordel despertou o entendimento da literatura enquanto ofício. Anos depois, decidiu por viver em Recife. Àquela altura, a capital pernambucana era solo fértil nos campos político e cultural.

Contista, romancista, editor, roteirista. Trabalhos traduzidos para o inglês, alemão e espanhol. Entre os títulos lançados constam “Sofia” (1994, Prêmio Osman Lins) e duas trilogias. Uma de contos, constituída por “Matriuska” (2009), “O destino das metáforas” (2011, Prêmio Jabuti de Literatura) e “Guerra de ninguém” (2015).

No território do romance, consta a trilogia que já soma mais de 15 anos de esforços. São “Fernanflor” (2016), “A estética da indiferença” (2018) e a conclusão, ainda sem título definido, que está nas mãos do editor, Samuel Leon, da Iluminuras. Sidney editou mais de 300 títulos, incluindo a iniciativa que é considerada um dos maiores projetos do Ministério da Educação (MEC): a coleção Educadores.

O acervo foi distribuído para mais de 170 mil escolas públicas da educação básica. O legado dos principais educadores brasileiros chegou a cinco mil bibliotecas públicas municipais, além de universidades e movimentos de defesa da educação. Aqui, adentramos uma das grandes causas do cearense, a defesa da educação. Sidney mantém cursos de leitura e escrita criativas nas escolas estaduais como parte de sua militância cultural.

Que momento?

O contato com a lida de Sidney descortinou a jornada de um autor mergulhado no embate contra as muitas injustiças desse Brasil. O Prêmio Literário Guerra Junqueiro é de suma importância. Entretanto, o momento é grave. São mais de cem mil brasileiros mortos. “É o momento de um reconhecimento não de minha trajetória, dos meus romances, de uma trajetória pessoal, mas coletiva”, defende.

O embasamento da luta mantida pelo cearense permite outras percepções acerca da premiação. “É o reconhecimento de que esse país chamado Nordeste ou Ceará ou Pernambuco é um lugar importante para novas construções da língua portuguesa. Um Sertão-todo-lugar silenciado por outros brasis cujas elites cultivam secularmente as desigualdades sociais, mas que pode, pela força de nossas subjetividades, dos esquecidos troncos linguísticos, indígenas, se reconhecer numa língua viva”.

Uma velha urgência também é iluminada por conta da premiação. Sidney escancara a lusofobia que ainda atrasa o Brasil. “Ele vem no momento onde é necessário repudiar os preconceitos, os exageros do nacionalismo, o extermínio de outras línguas, como as dos povos indígenas, sem língua e sem pátria, que estão sendo dizimados agora mesmo. É com esses mundos e desmundos que minha vida & literatura e ficção se relacionam, portanto. Este é o meu momento”, diz.

O comprometimento do entrevistado com a educação nos entrega reflexões pertinentes. Andando pelo Brasil, falando de literatura, dando aulas em escolas públicas e nos cursos de leitura criativa, Sidney testemunha o quanto é preciso combater um tipo de idealização em relação à literatura. “É preciso desfazer certa ideia romântica de que a simples ideia de contar histórias torna alguém um escritor ou uma escritora. Não caia nessa. Os meios e a tecnologia vulgarizaram essa tolice, não? Fizeram estabelecer a fake-idea de que para se ser escritor ou escritora basta contar histórias. Ora, qualquer presidente da República pode contar uma história, mas isso não o torna um escritor”.

Requer muito mais, salienta. “Escrever um romance de verdade não é uma conquista ‘democrática’, nada tem a ver com fazer justiça com os meios e os povos. Escrever é resultado de vivência, de fracassos, premeditados e não, de intenção concentrada”, reflete o juazeirense.

Devoção

Sidney costuma observar que sua religião é a literatura. Mas, a Igreja é a escola pública. Pergunto sobre mercado editorial e educação. Gentilmente, o autor detalha que é a escola quem vai mudar a cara do Brasil. “Embora minha literatura não tenha filiações, esse velho militante continuará lutando pela escola pública, pelo ensino gratuito, pelo direito à leitura literária. Se algum dia me prenderem de novo, me tirarão da escola, não do trono de um apartamento, vendo série de Netflix”, arremata.

Além da conclusão da trilogia, outros trabalhos protagonizados pelo cearense devem ser concretizados em breve. Uma tradução de “Fernanflor” deve sair na Colômbia e um livro de contos será traduzido para o inglês por volta de outubro.

Uma robusta História em Quadrinhos (na conta das 300 páginas) está em produção junto com a parceria de Greg Vieira. Uma adaptação da novela gráfica para os cinemas pode ser outra área de ação. A trajetória entre diferentes mídias ou plataformas é uma marca.

“Meus romances não são livros, são linguagem. Livros devem interessar aos livreiros. Escritores e escritores precisam se entender com a linguagem e não importa se escrevemos com a caneta, o teclado ou a luz. E como nem tudo precisa se transformar num livro, ou alteramos essa ideia antiga de “livro” sob risco de não ampliarmos esse conhecimento. E a literatura há tempo que não é essa linguagem tão normativa. O reino do escritor não é sequer a língua, essa sim, normativa, mas a linguagem. Nela, cabe tudo”.

Uma premiação no estrangeiro aproximou-me da história desse cearense. Seus livros e a intermitente coragem por justiça falam alto. Sidney Rocha fala com carinho de Juazeiro do Norte e do apoio da Secretaria de Cultura do município nesse precioso e consciente momento. “Esse Prêmio me dá a sensação de estar voltando para casa”, finaliza.

Com informações do Diário do Nordeste.