segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Cearense consegue certidão de nascimento após 70 anos e redescobre paixão pela vida

Foto Kid Júnior.
Quando falo Maria, falo de muitas. Quando falo Maria Imaculada Conceição, são apenas duas: a santa canonizada pela Igreja Católica, considerada livre da “mancha do pecado”; e a cearense que passou quase sete décadas sem existir oficialmente para o Estado. A história desta última é tão comovente quanto felizarda. Revela amor pela busca da dignidade.

Tudo começa com uma névoa no conhecimento de si. Dona Maria Imaculada até hoje não sabe quem são os próprios pais, nem qualquer pessoa da família. Desconhece a data exata de nascimento e até como chegou ao mundo. Sabe apenas que, ainda menina, passou a ser criada por uma família, cuja casa localizava-se na Praia de Iracema.

Desse tempo, a memória tratou de gravar o pior. “Me adotaram não como filha, mas como escrava”. Nunca foi ao colégio, não aprendeu o beabá. Sabia que aqueles não eram os próprios parentes, e, mesmo quando perguntava pelo pai e pela mãe, sobre como foi parar ali, não obtinha retorno. Davam calado por resposta. E havia coisas ainda mais cruéis.

O padrasto, por exemplo, era violento quando bebia. Fazia-a sofrer. A solidão tornou-se quase amiga, e a desesperança tomou conta dos dias. Uma apatia, um desconsolo. Além de inexistir para a pátria – sem certidão de nascimento, RG, CPF ou qualquer tipo de documentação – passou a morrer para si mesma. Amofinou-se, pequena que já era.

Mas esta jornada muda pela força poderosa da amizade e o desejo de transformação. Quando libertou-se da casa onde cresceu e da residência onde, na sequência, passou a trabalhar como doméstica – saiu de lá porque os moradores contraíram Covid-19 e ela, sem conseguir tomar vacina devido à inexistência de documentos, acatou a sugestão de uma amiga de ir embora – dona Maria passou a viver em Caucaia e a cultivar ternura com a vizinha, Cláudia de Araújo.

Apresentou-se a ela como Conceição – nome que recebeu daquela família – e, vez ou outra, visitava o lar da nova companheira de vista. As trocas sempre apascentavam as dores. Gostava daquele movimento. Em certo período, contudo, sumiu. Não ia mais na casa de Cláudia, não ocupava mais a rua. Aquilo despertou curiosidade: o que havia acontecido?

No reencontro, explicou: por estar doente e não conseguir ir ao hospital, dada a inexistência dela para o Estado, preferiu se guardar para se curar e voltar, renovada, à rotina.

Atenta à amiga, Cláudia decidiu ali mesmo que tentaria reverter aquela situação. Prometeu fazer com que, um dia, dona Maria fosse, de fato, alguém – não só para os próximos, mas para o mundo. “Deus me incomodou para eu ajudar a ela; até em sonho, me senti incomodada”.

Dirigir-se à unidade de Caucaia da Defensoria Pública do Ceará foi o primeiro e mais concreto passo. Por meio do órgão, o que parecia quase impossível, dada a complexidade da situação, tornou-se real: em 12 de agosto deste ano, quando recebeu, pela primeira vez, a certidão de nascimento, dona Maria, outrora sem saber quem era, mudou o status: a quem perguntasse, responderia pelo nome de Maria Imaculada Conceição.

A identificação assim, completinha, nome e sobrenome, foi escolhida em homenagem à santa que com ela esteve em todos os momentos. Quem cuidou e vigiou, dirimiu o pranto. “Ela nunca me abandonou”, emociona-se.

Com informações do Diário do Nordeste.