sábado, 12 de junho de 2021

Pandemia agrava cenário social e trabalho infantil no Ceará cresce quase 150% em 2021

Quarenta segundos. Este é o tempo em que o semáforo do cruzamento das ruas Batista de Oliveira com Bento Albuquerque, no bairro Cocó, em Fortaleza, fica aberto. O fugaz intervalo de tempo que transcorre quase imperceptível aos olhos dos condutores que aguardam para seguir viagem abriga uma triste realidade brasileira.

Sem camisa ou chinela, o garoto de 8 anos ergue suas pequenas mãos em direção aos motoristas à espera de ser recompensado com algumas moedas. Logo atrás, sua irmã, de apenas 9 anos, faz o mesmo ritual. Do outro lado da rua, a não mais de 30 metros, a mãe deles observa sentada, enquanto o padrasto utiliza a outra via para também pedir dinheiro ou comida aos motoristas.

Sinal fechado. É hora de retomar o fôlego e se preparar para próxima tentativa. Quarenta segundos se passam e lá estão novamente as duas crianças, com as mãos erguidas pedindo “ajuda”. Essas mãos, no entanto, deveriam estar munidas de livros e canetas, escrevendo as linhas de seus futuros ou brincando, sem preocupações precoces com a situação financeira da família. Deveria.

O verbo conjugado no futuro do pretérito do indicativo tem uma razão de existir. “Se a gente não pedir aqui, não tem comida em casa”, diz o jovem com voz tímida e olhar cabisbaixo. Pergunto se ele sente falta de ir à escola. A boca silencia e ele acena com os ombros, como se não souber o que responder.

Insisto e questiono se ele gostaria de estar brincando. “Sim”, diz ele. Após a resposta direta, o pequeno visualiza o semáforo vermelho e segue em direção dos carros. Sua mãe, ao observar a reportagem do Diário do Nordeste se afasta. Ela não quis conceder entrevista e em seguida retirou as crianças do local.

A rotina nas ruas desses dois jovens não é uma exceção. Ela ecoa por entre as incontáveis ruas de todo o Ceará. Dados divulgados pela Superintendência de Fiscalização do Trabalho no Ceará, às vésperas do Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, celebrado neste sábado, dia 12 de junho, mostra uma tendência de crescimento da exploração do trabalho infantil.

Segundo o relatório, o número de crianças e adolescentes flagrados e resgatados em situação de trabalho infantil passou de 30 em 2020, para 74 em 2021 (de janeiro a maio). Em apenas cinco meses, crescimento de 146% ante aos doze meses do ano passado.

Este salto, segundo o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), no Ceará, Antônio Lima, sucinta várias questões sociais e pode não representar um índice fidedigno. Ele destacou que não há, no Brasil, dados oficiais sobre o trabalho infantil. Tais informações poderíam ser colhidas no Censo (decenal) do IBGE, "mas que não foi realizado em 2020 e nem será feito neste ano”.

“Há apenas olhares, impressões”, acrescentou. O procurador, no entanto, disse ser possível afirmar que "houve aumento da vulnerabilidade social" e, por esta razão, é provavél que tenha ocorrido também um substancial crescimento do trabalho infantil.

160 MILHÕES DE JOVENS EM SITUAÇÃO DE TRABALHO INFANTIL

Assim como no Ceará, o cenário mundial também se agravou. Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), divulgado nesta semana, revela que o contingente de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil chegou a 160 milhões – aumento de 8,4 milhões de crianças de 2016 a 2020.

O estudo aponta ainda que outras 8,9 milhões correm o risco de inflar ainda mais essa realidade até 2022. O principal fator agravante é a pandemia da Covid-19.

Sem emprego e, consequentemente, sem renda, chefes de famílias se lançam à rua na busca de algum sustento. O problema social ganha contornos ainda mais delicados quando os pais decidem levar consigo seus filhos.

A assistente social e coordenadora do Núcleo de Proteção Social Especial da Secretaria de Assistência Social, Direitos Humanos e Cidadania de Iguatu, Cynthia Maciel, considera que “a insuficiência financeira das famílias impulsiona o aumento do trabalho infantil”.

O chefe do Escritório do Unicef, no Ceará, Ruy Aguiar, concorda que “a crise advinda da pandemia do novo coronavírus aumenta a probabilidade, o risco real, de ocorrer um crescimento do trabalho infantil” e destaca que a solução passa pela instituição de políticas públicas mais efetivas e investimento na educação.

“JÁ QUE NÃO TEM AULA, VOU TRABALHAR”

Há mais de um ano com as aulas presenciais suspensas, o ensino remoto ou híbrido segue sendo um desafio para muitos que não têm acesso à internet. Estes obstáculos, na concepção do auditor e chefe da fiscalização do Trabalho no Ceará, Daniel Arêa, convergem no abandono escolar e refletem na expansão do trabalho.

“A mendicância é notória. São inúmeras crianças e adolescentes trabalhando e outras nas esquinas vendendo balas ou pedindo dinheiro”, diz. Em Iguatu, cidade-polo da região Centro-Sul do Estado, o adolescente de 16 anos ilustra o cenário descrito por Daniel Arêa.

Sem conseguir ter acesso à aula, o jovem viu sua rotina mudar completamente desde o início da pandemia. “Meus pais trabalham na feira livre e nessa pandemia as vendas acabaram, então não dá para ficar em casa sem fazer nada. Aproveitei que não está tendo aula e estou trabalhando”.

Ele e seu irmão, ambos estudantes do ensino fundamental, ajudam o pai carroceiro com o serviço de retirada de entulho e transporte de areia e móveis desde o ano passado. O pai da dupla, Antonio de Souza, naturaliza o trabalho dos jovens ao considerar que “já que não está tendo aula, é melhor está trabalhando, aprendendo alguma coisa, do que está na rua brincando”.

A presidente do Colegiado Estadual dos Gestores Municipais de Assistência Social (Cogema), no Ceará, Ieda Castro, discorda do posicionamento do pai dos adolescentes - que também infringe a legislação.

Por uma questão cultural, os pais consideram uma situação normal. As crianças deveriam estar estudando e tendo um desenvolvimento saudável.

Ieda Castro

Presidente do Cogema

IMPACTO EDUCACIONAL

A professora de pedagogia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), especialista em educação infantil, Sandra Schramm, reconhece que, para estes jovens fora da escola e inseridos no contexto do trabalho infantil, há significativa perda de aprendizagem.

Ela ressalta, porém, que ainda não há pesquisa que apontem os reais impactos da pandemia no processo de aprendizagem de crianças e adolescentes, mas afirma que "elas [perdas] são evidentes".

Estamos diante de uma tragédia, de um cenário desastroso. Além da perda de aprendizagem de conteúdo, há perda de autoestima, socialização, construção do sujeito, afetividade e no aspecto psicológico.

Sandra Schramm

Pedagoga

A especialista avaliou ainda que na pós-pandemia, as crianças poderão estar com conhecimento restrito ao conteúdo de dois anos anteriores. “Será um novo desafio". Para minimizar os impactos, Ruy Aguiar considera importante “o acompanhamento da frequência escolar, da realização de busca ativa dos alunos e o pagamento do auxiliar emergencial como meios para evitar o trabalho infantil”.

Olhando para o futuro, Arêa projeta que estes jovens estão privados de se desenvolverem e se qualificarem. "Quando adultos, não terão muitas possibilidades para o mercado de trabalho já que não tiveram chance de nenhum aprendizado nas escolas, cursos técnicos ou em universidades”.

TRABALHO NÃO PERMITIDO PARA MENORES DE 16 ANOS

A legislação brasileira proíbe crianças e jovens abaixo de 16 anos a exercerem qualquer trabalho que os prive da infância, interfira na capacidade de frequentar a escola e afete seu desenvolvimento. No Brasil, são listadas 93 formas de Trabalho Infantil, classificadas segundo proposta da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A classificação inclui:

Agricultura, pecuária, exploração florestal, pesca, extrativismo e abate de animais;
Construção civil;
Distribuição de água;
Oficinas mecânicas;
Armazenamento de álcool, explosivos e líquidos inflamáveis, e manuseio de produtos químicos;
Comércio ambulante;
Trabalho doméstico;
Lavagem de carros.

Em 2020, a Fiscalização do Trabalho realizou 654 ações fiscais de combate a esse tipo de mão de obra. Deste total, 35 empresas foram autuadas por exploração de mão de obra infantojuvenil. O número considerado alto pelos auditores já foi ultrapasso em 2021. Apenas entre janeiro a maio deste ano, foram 49 autuações, crescimento de 40%.

Em 2020, foram resgatados 22 crianças e adolescentes que se encontravam nas pioras formas de situação de trabalho infantil, como em lixões.

Daniel Arêa

Auditor e chefe da fiscalização do Trabalho no Ceará

RISCOS À SAÚDE

Crianças e adolescentes inseridas no contexto de famílias vulneráveis, e que estão em atividades de trabalho infantil consideradas perigosas, são mais propícias a contraírem doenças graves – tétano, hepatite, leptospirose, verminose e a Covid-19. O alerta foi feito pela médica infectologista pediátrica, Michele Pinheiro.

“Nesse cenário crítico de pandemia do novo coronavírus crianças e adolescentes vendendo ou pedindo ajuda nos semáforos, sem máscaras, correm, sim, mais risco de contrair o coronavírus ao se aproximar de motoristas também sem máscara e ao pegar em dinheiro”, alertou Michele.

Uma vez contaminado [o jovem] pode levar a doença para os pais e avós para o ambiente doméstico.

Michele Pinheiro

Pediatra

A médica infectologista com especialização no tratamento de crianças também externa preocupação com crianças e adolescentes que têm contato frequente com lixos e entulhos. “Quando se manipula material reciclado há risco de cortes, infecções, transmissão de leptospirose no lixo, pela urina do rato, que são as doenças infectocontagiosas”.

SOLUÇÕES

A presidente do Cogema no Ceará, Ieda Castro, considera importante a instituição da data em que se celebra o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, mas alerta que, para reverter este preocupante cenário, é preciso "ir além de apenas uma campanha ou Dia D".

Ela sugere que seja desenvolvidas políticas públicas contínuas, com incremento nos repasses federais para a Assistência Social, "mas infelizmente aconteceu o contrário e os repasses caíram cerca de 70% nos últimos anos".

Daniel Arêa também defende o diálogo entre as diversas instituições - Ministério Público do Trabalho, Promotorias de Justiça do Estado, Conselhos Tutelares e secretarias municipais de Assistência Social - para garantia de uma atuação unificada e eficaz.

A troca de informações, o encaminhamento de denúncias e o estabelecimento de políticas públicas em rede contribuiriam para melhorar fiscalização e mitigar o quadro atual.

Daniel Arêa

Auditor

Com informações do Diário do Nordeste.